12.12.17

Retrospectiva 2017

- Poesia Quimeras selecionada para compor a coletânea do 9º Concurso Conto e Poesia - Sinergia - Florianópolis – SC;

- Poesia Mitologia selecionada para compor antologia da Big Time Editora;

- Um microconto selecionado entre os melhores do 5ª Prêmio Escambau de Microcontos - Fortaleza - CE;

- Quatro microcontos selecionados entre os melhores do 4º Prêmio Escambau de Microcontos - Fortaleza - CE;

- Cinco microcontos selecionados entre os melhores do 3º Prêmio Escambau de Microcontos - Fortaleza - CE;

- Três microcontos selecionados entre os melhores do 2º Prêmio Escambau de Microcontos - Fortaleza - CE;

- Poesia Rascunho selecionada para publicação pela Chiado Editora, de Portugal;

- Poesias, contos e microcontos publicados pela Revista Gueto;

- Organização, diagramação e publicação da coletânea do I Prêmio IFSC de Literatura;


Que venha 2018!

O próximo

Então, antes de morrer, ele sussurrou a um daqueles que o observava, cúmplice:

– Ame a si mesmo como se fosse o próximo.

11.12.17

Mimicry

Altough it sounds the same

one face in the crowd

is the complete
opposite

of one facing the crowd

10.12.17

Penitência em trajes de domingo

Cada qual
com sua queixa

em comum,
apenas o proclamado
- dramatizado

papel de mártir


— Não me deixam entrar
por má vontade!

— Reclamam de tudo
porque me invejam!

— É um complô,
uma estratégia!


Uma miséria de resistência

não durariam uma semana,
sequer um dia

nas vestes apertadas
- sufocantes

do verdadeiro sacrifício

9.12.17

Adestramento

O homem é um animal político

Felizmente, há mulheres dispostas a domestica-los

8.12.17

Perpétuo

Vivia com a cabeça nas nuvens
O corpo definhava, há anos debaixo da terra, mas a memória foi extraída e preservada

7.12.17

Nuvens

Os comentários
e mensagens

dos amigos desavisados

nas fotos sorridentes
dos finados


viver nas nuvens

tornou-se um destino
melancólico

6.12.17

Terminal

Viviam todos nas nuvens.
Quando caia a conexão, ninguém sabia o que fazer com a realidade.

5.12.17

Nuvens e névoas

– O papai foi viver nas nuvens, filho.

–  Mas eu quero ele aqui comigo!

– Não vai dar, filho.

– Não é justo!

– Eu sei que não é... mas uma hora ele cansa daquele celular.

29.11.17

Reminiscência

Impassível
inabalável

tornou-se,
enfim

um monumento

um símbolo
de esperança

de novos tempos
que virão

e passarão

- despercebidos

28.11.17

Esvoaçando

Precária armação
de bambu

adornada
- sem excessos

com papel de seda


atada a um fio
- de esperança

que subiu aos céus
no final de tarde

27.11.17

Regresso

Todos as manhãs, ela pede ajuda para colocar um belo vestido e fazer a maquiagem; Repara que as mãos estão trêmulas e aponta a culpa da ansiedade.

Com toda a elegância que lhe resta, segue para a estação de trem, onde embarca diariamente para a década de quarenta; e aguarda o reencontro com o amado.

26.11.17

Confidências

Trago péssimas notícias
para ti, Cecília


Os destinos se perderam

pelos caminhos tortuosos
desse mundo distorcido


As ideias retiraram-se
em meio ao tumulto


E os homens
já não sonham mais

sucumbiram, derrotados
- sob a força dos vermes

19.11.17

Ignição

Ao atiçar as primeiras fagulhas, pensava apenas em preparar o terreno

Quando percebeu-se cercado pelo fervor, as chamas já eram incontroláveis

26.10.17

Alvorada

No remoto horizonte

um fulgor resplandece
após longa vigília


- Há luz!
anunciam sorridentes
os fatigados combatentes

E fagulhas de esperança
cintilam

nos olhos marejados
dos otimistas


Ao longe
na praça

a céu aberto

as línguas de fogo
devoram

a carne dos iludidos

1.7.17

Aplicada

Após seis anos cursando medicina, dois na primeira residência, três na segunda e mais quinze atuando no serviço público e sucateado de saúde, sem condições efetivas de salvar vidas; ela precisava de uma injeção de ânimo.
Aflita, prometia a si mesma, durante a aplicação, que esta seria a última.

30.6.17

Instintos e Instituições

Quando a cidade amanheceu isolada pelo exército, em quarentena; ele já sabia que não seria salvo pela medicina, pela fé ou pelo estado.
Naquele dia, juntou toda munição e comida enlatada que conseguiu carregar e dirigiu-se para um local mais seguro. Os infectados retomariam as ruas ao pôr do sol.

29.6.17

Se limites

No tribunal, declarou que seus experimentos buscavam avanços para a medicina e para o agronegócio; e que a ciência não podia ser contida!
Mas não soube explicar qual era seu propósito em relação àquelas criaturas híbridas, quimeras repulsivas, acorrentadas no subsolo.

28.6.17

Militante

Desde pequeno, demonstrou interesse pelas ciências humanas, em especial a medicina e a psicologia.
Após a grande invasão e, em questão de dias, a conquista, usou os conhecimentos adquiridos para reduzir a ansiedade e o estresse no caminho para o abate. Sensibilizado, defendia os direitos humanos.

27.6.17

Crédito

Primeiro buscou a medicina tradicional; depois, cada um dos tratamentos alternativos.
Também recorreu à fé; em cada uma das religiões e crenças.
Quando veio a cura, não sabia direito a quem agradecer.
Teve que explicar ao doutor:
– É tanto dízimo e oferenda que vou ter que pendurar as consultas.

26.6.17

Incursão

Acordaram com o barulho.
– Você vai ou eu vou?
Ela se apressou:
– Eu vou!
Destrancou a porta e seguiu de encontro aos ruídos.
Ao deparar-se com aquela cena, disse:
– De novo, meu filho! Não tem mais nada de valor aqui. Larga dessa vida! Já tão comentando na igreja que você é drogado, virou ladrão.

25.6.17

Sócio

Ele não havia sido um reles ladrão; era o chefe do esquema. Sujeito perspicaz, ardiloso.
Depois que ele chegou, Caronte nunca mais remou; e passou a cobrar cinco moedas por cada viagem: uma para a empresa terceirizada das barcas, uma para si próprio, uma para Hades e duas para o novo patrão.

24.6.17

Corte

No centro do auditório, aquela senhora permanecia sentada e vendada.
O apresentador perguntou:
– Você solta este... –apontou para o empresário corrupto–... Para prender este aqui? – apontou para o ladrão de galinhas.
Sem muita ponderação, ela gritou:
– Siiim!

23.6.17

Pureza

Antes de irem à igreja, encontraram-se no lavatório.
A noiva visivelmente nervosa. A avó a acalmou e ajudou a corrigir a maquiagem, apontando o excesso de pó de arroz.
Na cerimônia, quando todos se afligiam, ela comentou comovida:
– Continua a mesma mocinha; sangra o nariz quando fica ansiosa.

22.6.17

Modernidades

Naquela casa noturna pós-moderna, progressista, sentiu-se meio deslocado.
Até o mictório, rebuscado, ficava em um espaço mais aberto. Mas, apesar de inibido, ele estava apertado.
Quando notou alguém urinando no lavatório, o segurança ponderou: "não vou nem falar nada, esse povo é todo louco".

21.6.17

Negócio de família

Sempre fora um negócio de família, mas que se adaptou aos tempos.
De início, foi uma discoteca inaugurada pelo avô. Depois, a casa noturna gerenciada pelo pai. No entanto, foi com ele que chegaram os tempos de glória: transformou o palco em altar e realizava cultos de domingo a domingo.

20.6.17

Restelo

Ludibriado pelo capitão, que prometera levá-lo à aventura em troca de um punhado de moedas, o velho ressentido, vendo-se condenado a morrer trabalhando a terra, como o fizera por toda vida, correu ao terminal de embarque do cais e rogou pragas sobre todos que partiam, já ao longe.

19.6.17

Descaminhos

Não aguento mais reuniões e aeroportos. Não consigo nem saber onde estou; escritórios e terminais são todos iguais.
Penso em conferir o bilhete, para saber se estou indo ou voltando, mas já não tenho nenhum interesse em ir ou voltar, não por esse caminho.
Quando chamarem meu nome, estarei longe.

18.6.17

Espreita

Após meses de isolamento naquela estação avançada de pesquisas, aguardavam ansiosos pelo retorno à civilização. Sequer imaginavam que, no terminal de cargas, um passageiro clandestino os espreitava.
Jamais chegariam ao destino planejado.

17.6.17

Sem cura

No letreiro sobre o para-brisa, lia-se em letras garrafais: terminal.
Uns diziam que era o destino; mas outros cochichavam que era deboche do dono da viação, aparentado do prefeito, que deixava os ônibus caindo aos pedaços.

16.6.17

Rejeito

Decidido, dirigiu-se ao terminal de autoatendimento.
A fila estava curta; logo entrou na cabine. Marcou na sequência: indolor básico, cremado e lançadas ao mar. Recusou o adicional de morfina e confirmou o débito em conta.
A cidade orgulhava-se do moderno sistema de tratamento de resíduos sólidos.

14.6.17

Fervor

Em forma de uma língua de fogo, o espírito santo revelava-se e derramava glória sobre os homens, purificando-os.
Galileu recusou a benção.

13.6.17

Comunicação

Entre arquitetos, engenheiros e operários, havia alemães, japoneses, franceses, ingleses, chineses, indianos, egípcios, marroquinos e outras tantas nacionalidades.
No entanto, nas torres de Dubai, não tinham qualquer problema para se entenderem; todos falavam a língua universal: o dólar.

12.6.17

Amontoado

Desci do carro cambaleando. Passei a língua pelos dentes, trincados e ásperos. O gosto de sangue era intragável. Senti enjoo.
Juntavam-se à cena os vizinhos curiosos, os funcionários do comércio e o pessoal que saia da igreja.
Tentei sair dali, mas fui contido. Um grito ecoou:
– Assassino!

11.6.17

Tortura

Ao encontrar uma poça suja, resquício da última chuva, prostrou-se para ao menos molhar a garganta. Mas, antes que pudesse alcançá-la, foi impedido.
Após o puxão, sua algoz apertou mais a coleira e continuou conversando com a amiga:
– Ele adora passear; fica de língua de fora, todo feliz!

10.6.17

A ilha

O Império almejava, através do embargo econômico, isolar aquela ilha, que dependia do comércio exterior para suprir suas demandas.
A estratégia poderia lograr sucesso, mas a afronta à Rússia tornou a questão mais complicada.
A Inglaterra não se deixou abater. Napoleão, soberbo, acabou derrotado e exilado.

9.6.17

Alternativa

Ele preferia cães a gatos.
No entanto, após os embargos sobre a carne bovina, por conta da vaca-louca; sobre as aves e suínos, devido às gripes; e também sobre os peixes, saturados de metais pesados; não podia mais se dar ao luxo de ficar escolhendo.

8.6.17

Liberdade

Em seus devaneios, circulava livremente, sem quaisquer embargos ou ameaças.
Edris era apenas uma pessoa, com os agravantes de ser Curdo e ter nascido na Síria; mas sonhava em ser tratado, por um dia que fosse, como uma nota de cem dólares.

7.6.17

Porta em porta

No princípio, vendia almanaques e enciclopédias, pesados volumes. Depois vieram os kits multimídia, com tudo aquilo em dez ou quinze CDs.
Ele sabia trechos de cor, para impressionar. Hoje, não recorda nem mesmo o próprio nome.
Há quinze anos na rua, segue batendo de porta em porta; de mãos vazias.

6.6.17

AI

Adquiriu por anos amplo conhecimento: clássicos da literatura, bibliografias completas, volumes das principais enciclopédias, almanaques de variados temas, notícias, imagens, vídeos, músicas, mapas, dados pessoais...
Mas apenas quando adquiriu consciência, foi que aquilo tudo se tornou um problema.

5.6.17

Catálogo

Mantinha tudo perfeitamente organizado, todos os atos, fatos e imagens, em almanaques publicados ano a ano, pessoa por pessoa.
Quando se sucedia o ato derradeiro, ele finalizava a edição vigente, reunia a coleção e ia buscar o novo hóspede. Com tantas provas, não havia santo capaz de absolvê-los.

4.6.17

Desabafo

Foram meses de brigas, a traição, a separação e, por fim, a disputa pela guarda. Aquilo tudo já era demais para a cabeça dele.
Mas foi apenas quando o filho revelou que queria morar com a mãe, que ele desabou em lágrimas e desabafou, arrependido:
– Eu também.

3.6.17

Insustentável

O divórcio foi traumático.

Após a extenuante disputa judicial, ele, cabisbaixo, precisava escolher com quem ia morar.

Com os pais ou com algum amigo. Não conseguiria se manter sozinho.

2.6.17

Mate

A disputa pelo poder fez mais algumas vítimas.
Após a queda do rei, as investigações revelaram o responsável pelo golpe de Estado: todos os cheques haviam sido expedidos pelo bispo. Os peões foram apenas inocentes úteis.

1.6.17

Disputa de egos

Com o tempo, virou tudo uma grande disputa de egos: quem aparecia mais, quem conseguia ir mais longe, quem fazia as maiores loucuras.
Esgotado pelos excessos da rotina frenética, em um breve momento de lucidez, deu um fim a todas aquelas personalidades.

31.5.17

Financiamento

Com os pagamentos em atraso, a equipe fazendo corpo mole e as derrotas acumulando-se junto às disputas judiciais, o dirigente finalmente encontrou a solução.
Após muito diálogo, conseguiu um novo patrocinador master, para ocupar a vaga deixada pela empreiteira. A crise chegaria ao fim!

30.5.17

Carmen

A estreia da ópera foi um fracasso. Os críticos apontaram o absurdo daquela protagonista: uma cigana dissimulada e infiel. Diziam que, com aquele exemplo, o que se poderia esperar das mulheres da sociedade? Logo não se poderia mais confiar nelas.
Machado observava tudo de longe; e discordava.

28.5.17

Novelas de época

As peças, óperas e outros espetáculos eram executados no palco principal do grande teatro municipal; mas ficavam quase sempre em segundo plano.
Os maiores dramas, tragédias e intrigas desenrolavam-se, sob olhares e ouvidos atentos, no foyer e nos amplos corredores.

27.5.17

Apreciadores das Belas-Artes

No final de 1896, inaugurou-se o Teatro Amazonas.
O responsável pela obra foi aclamado pelo povo na rua, mas desprezado pela elite no interior.
No meio da ópera, alguém gritou:
– É preciso eliminar o negro!
Muitos riram.
Eduardo Ribeiro retirou-se; e só retornou para dar nome à avenida em frente.

26.5.17

Sangue em Sevilha

Na noite de estreia da ópera de Rossini, sucedeu-se a tragédia. No intervalo, alguém trocou o inofensivo objeto de cena por uma navalha afiada.
O crítico do jornal local, que acordou sobressaltado com o corte brusco, desdenhou da direção a la Tarantino.

25.5.17

Atualidades

Após o banquete, foram para a sala, esparramar-se no sofá e debater os grandes temas atuais.
Quando reparou na movimentação para tirar a mesa, cuidar das crianças e lavar a louça, interrompeu a conversa com o sogro e os cunhados; os temas já pareciam um tanto ultrapassados.

23.5.17

Metodologias

Quando o genro e a filha foram embora, a sogra desfez o sorriso, foi para a cozinha e colocou toda a louça do escorredor de volta na pia. Enquanto esfregava novamente os pratos e talheres, dizia para si mesma, indignada:
– De que adianta fazer mal feito? Melhor deixar para quem sabe...

22.5.17

Traiçoeira

Expôs orgulhoso a sua criação:
– A máquina é infalível! Não tem sentimentos, não se deixa enganar.
O general insistiu, então, que o criador tivesse a honra de testá-la.
As primeiras perguntas foram inofensivas. Mas, quando indagaram se havia vendido o projeto aos inimigos, as agulhas dispararam.

21.5.17

III Prêmio Escambau de Microcontos

O Prêmio Escambau de Microcontos, organizado pelo grupo Escambanautas, de Fortaleza, tem uma dinâmica muito interessante de participação: são lançadas palavras-tema diárias e, semanalmente, os organizadores selecionam os 35 melhores textos. O concurso dura 28 dias e atrai participantes de todos os cantos do país; além de alguns autores e autoras além-mar!

Na terceira edição do prêmio, realizada em abril de 2017, cinco de meus microcontos foram selecionados entre os melhores do certame, incluindo um terceiro lugar na terceira semana do concurso.

Brevidade

Estranhei o silêncio na sala.
Ao aproximar-me, ouvi apenas o remoto, mas inconfundível, barulho das teclas.
Quando notou-me à porta, ele questionou:
– Oi, vô! Fiz aqui um poema... como é que imprime?
Ali, diante da máquina de escrever, dei-lhe a primeira lição sobre o quanto a poesia é efêmera.

20.5.17

Locomotiva

As engrenagens um pouco gastas atritam-se, barulhentas. Enquanto isso, sobre as chamas, a válvula dá voz aguda aos vapores carregados.
Na estação da memória, entre a máquina de lavar e a panela de pressão, embarco nesta viagem às manhãs de domingo, à casa de minha infância; minha raiz-locomotiva.

19.5.17

Registro

Caminhava ansioso rumo à Capela Sistina, registrando cada passo, cada detalhe.
Ao passar por uma porta, no entanto, um dos seguranças chamou sua atenção e apontou para uma placa: um círculo vermelho e uma tarja sobre uma máquina fotográfica.
Fechou a cara e foi embora. De que adiantaria só ver?

18.5.17

Desfecho

Isolado em um quarto de hotel, pensou em Ícaro, no sonho e na liberdade. Pensou em da Vinci, nos grandes gênios, nos sucessos e fracassos que o levaram até ali.
Mas logo abaixou a cabeça, cobrindo o rosto com o chapéu, e murmurou:
– A obra da minha vida... uma máquina de guerra.

17.5.17

Incontrolável

Quando a seca já havia mirrado a vegetação nativa, julgou que era o momento propício para limpar o terreno.
As chamas se espalharam rápido.
Quando viu a raposa, símbolo da esperteza, correndo em direção ao fogo, riu. Mas logo notou que as labaredas não tardariam a chegar até a casa. As crianças.

16.5.17

Responsável

A primeira caçada era uma grande festa; marcava o início da primavera.
Na alvorada, o rei partiu com a comitiva completa, atrás dos cães, rumo às florestas do norte.
No final da tarde, ele retornou inconsolável. Com o velho arcabuz descompensado, mirou a raposa; mas alvejou o pequeno príncipe.

15.5.17

Instantânea

Quando queriam saber das novidades do bairro, todos já sabiam a quem recorrer.
Poucos sabiam o nome daquela senhora que vivia varrendo a calçada, por mais que já estivesse limpa. Mas o apelido era famoso: Polaroid, revelava os segredos instantaneamente.

14.5.17

Segredos

A chefe da cozinha do castelo comentava com a auxiliar sobre uma receita especial, quando o menino que carregava lenha entreouviu apenas uma frase:
– Mas a rainha tem um segredo!
Naquela terra fértil para intrigas, não levou mais de dois meses para um festival de decapitações e mortes na fogueira.

13.5.17

Confidência

Quando o questionaram se conseguia guardar segredos, não imaginou que seria tão complicado.
Apesar do desconforto, não podia recusar o pedido. Seguiu em frente, passo a passo, receoso.
O momento mais crítico, no entanto, foi quando, após a revista das celas, precisou retirar e devolver tudo.

11.5.17

Condenado

Quando sentiu o calor - e a fumaça começou a entrar pelo vão da porta, pensou resignado: devia ter ido de escada.

10.5.17

Reservado

Ele ficava indignado: tudo era restrito, exclusivo ou reservado.
De escolas a universidades, assentos de ônibus a mesas de restaurante; tudo tinha limite. Até o elevador era "social".
E ainda ousavam lhe dizer que era uma terra de oportunidades... Subir na vida? Só se fosse de escada.

9.5.17

Degraus

A vida oferecia dois caminhos.
Mas, naqueles tempos de sedentarismo, a concorrência tornou-se desleal: a escada para o céu estava às moscas, enquanto a rodovia para o inferno tinha até congestionamento.

8.5.17

Acolhimento

No Sul do país, os vizinhos mais fervorosos mantinham a tradição de preparar uma recepção calorosa para aqueles que consideravam desajustados, anormais.
Na primeira noite após a mudança, surpreendiam-nos com a cruz em chamas no quintal, os discursos de ódio; e as tochas atiradas pelas janelas.

7.5.17

Simbolismo

Naqueles tempos sombrios, o cardeal fazia repetidas vezes o sinal da cruz; com ferro em brasas, em cada um dos hereges.

6.5.17

Trindade

Precisava atravessar apenas uma fronteira para fugir da guerra. Mas, para escapar à fome, ainda restaria meio mundo.
Para evitar problemas, trazia consigo a cruz, a estrela e a lua crescente. Mas nunca sabia ao certo, ao deparar-se com um posto de controle, qual dos amuletos traria melhor sorte.

5.5.17

Interesses

Na época da multiplicação e da fartura, estava sempre cercado de gente.
No entanto, quando veio a crise, teve que carregar a cruz sozinho.
Passada a tormenta, recuperou-se e ascendeu em questão de dias. Mas, após tanta decepção, não teve dúvidas: ordenou que escrevessem um novo testamento.

Interesses

 Na época da multiplicação e da fartura, estava sempre cercado de gente.
No entanto, quando veio a crise, teve que carregar a cruz sozinho.
Passada a tormenta, recuperou-se e ascendeu em questão de dias. Mas, após tanta decepção, não teve dúvidas: ordenou que escrevessem um novo testamento.

4.5.17

Serenado

Era um sujeito debochado, levava a vida na flauta.
Um dia, no entanto, mexeu com a pessoa errada. Levou uma surra e ficou desconcertado; sobrou só o pó da gaita.
No dia seguinte, lembrou-se dos conselhos do pai, que batia sempre na mesma tecla: ficou pianinho.

3.5.17

Fascínio

Não era bom caçador; tinha que se contentar com sobras.
Até o dia em que restaram asas de abutre. A carne era pouca, a fome, muita. Roeu ossos e, quando chupou o tutano, um som singular ecoou ao redor da fogueira.
Tinha em mãos a primeira flauta do mundo; e todos passaram a segui-lo com oferendas.

2.5.17

Penitência

Caminhava com dificuldade e carregava, além da idade avançada, cicatrizes e chagas abertas. Mas suportava as dores intensas e mantinha-se fiel; um verdadeiro mártir.

Ao final do dia, desferia nas costas dezenas de chicotadas. O confessionário não seria seguro para expurgar seus segredos e pecados.

1.5.17

Retalhos

Quando viu pela primeira vez o globo terrestre, dividido apenas entre água e terra, ficou um tanto confuso.

O que eram, afinal, todas aquelas linhas tracejadas que via nos mapas?

Cicatrizes, talvez... não sabia ao certo como encontrar um sentido para tantas divisórias.

30.4.17

Cicatrizes

Os meninos da rua exibiam as cicatrizes como medalhas por bravura:

– Essa aqui foi de skate.

– Cortei numa pedra no fundo do rio.

– Pulando o muro pra pegar a bola.

– Explorando a construção abandonada.

No entanto, quando perguntaram ao novato onde havia conseguido a dele, ele soluçou:

– Meu pai...

29.4.17

Normal

Era assustadoramente comum: não havia nenhum traço marcante; uma cicatriz que fosse, olhos faiscantes ou muito opacos, nariz torto, um tique, trejeito; nem ao menos um tom de voz ou respiração brusca que levantassem suspeitas.

Havia apenas uma maldade incerta, dessas que se encontra em qualquer um.

28.4.17

Evidências

Usava manga comprida sobre as marcas nos braços.

Os hematomas no rosto, escondia com maquiagem.

A echarpe encobria os ferimentos no pescoço.

Sabia bem o que não se podia disfarçar; e fez o corte de uma bochecha a outra.

A cicatriz o acompanharia pelo resto da vida. Em cada espelho, ele a veria.

27.4.17

Ilusionista

Embaralhava os elementos, tentando manter a atenção da plateia.

Em um instante exibia, no outro escondia. Explicava, mas logo depois confundia.

Ao final, cada um dizia ter visto algo diferente. Algumas vezes até discutiam.

O truque era simples; não tinha qualquer magia: era só misturar palavras.

26.4.17

Fulgor

Aproximou-se lentamente, dividido entre o medo e o fascínio.

Os olhos cintilantes refletiam aquela magia. Estendeu a mão para tocá-la; mas logo recuou, urrando de dor.

Da dor passou à ira; e lançou-se ao ataque, até extinguir as chamas a pauladas. Ainda não estava pronto para aquela novidade.

25.4.17

Frágil

Ela era muito sensível e não conseguiu conter-se após os gritos do marido.

No entanto, logo se recompôs; ainda tinha que limpar a casa toda, enterrar o corpo, queimar o lixo e agir como se nada tivesse acontecido.

24.4.17

Esgotamento

Ela chorava baixinho, receosa, quando se aproximou da irmã mais velha e confidenciou o motivo do pranto. Após uma frase e meia, a irmã exclamou, sem qualquer ternura:

– Mas é só um pouco de sangue! E vai vir mais, todo mês!

Os gritos de desespero foram ouvidos por toda a casa.

23.4.17

O papel que lhe cabe

Durante a noite, cobria-se com o sangue quente que escorria do jornal popular.

Apesar do barulho dos tiros, zunindo a cada página, dormia tranquilamente; torcendo para não virar uma notinha de rodapé.

22.4.17

Vestígios

O fim do relacionamento foi um tanto conturbado.

Passou horas lavando a roupa suja; mas o sangue não saia.

21.4.17

Sitiado

Vi-me cercado por um bando de palavras ariscas, indomáveis.

Tentei dominá-las, contê-las em gaiolas ou jaulas; mas fracassei.

Acordei com um pé-de-vento espalhando os rascunhos pela sala; num farfalhar de páginas em branco.

20.4.17

Suicida

De súbito, ela atirou-se, deixando-me em silente desespero.

Eu queria gritar, mas não podia. Eu não sabia...

A palavra maldita, suicida, estava na ponta da língua.

19.4.17

Termodinâmica

Em meio à discussão, ele tentava, em vão, medir as palavras.

Não tinha noção alguma de física.

Mal sabia que palavra é matéria-viva; que, com muito calor, se dilata.

18.4.17

Simpatia

Ela era um pouco rude, indelicada, e tinha péssimas manias. Não tinha sequer um traço de simpatia.

Vivia botando palavras na boca dos outros. Depois costurava os lábios e os enterrava no quintal.

17.4.17

Desalento

Após algum tempo, desisti.

Para meio entendedor, não havia palavra que bastasse.

16.4.17

Língua solta

Mantiveram-me amordaçado, não queriam me dar a palavra.

Após sinal do chefe, liberto, dei-lhe a minha palavra; e ele, então, pediu para ter uma palavrinha comigo, em reservado.

Os capangas titubearam, mas ele cuspiu palavra de ordem!

Quando ficamos a sós, arranquei dele as últimas palavras.

15.4.17

Dupla jornada

Andava sempre com aquela bolsa de couro recheada com alicate, bisturi, lixa, tesoura e pinças.

Passava o dia extraindo unhas encravadas, removendo peles, lixando calos, cortando daqui e puxando dali. Durante a noite, o serviço era bem parecido, mas o patrão era um agiota.

Tratava calos e calotes.

14.4.17

Domínio

Vivia pisando em ovos. Sentia-se mal, angustiada; e desequilibrava-se sobre os saltos, com receio de que se rompessem.

Mas pagavam bem.

13.4.17

Impacto

O impacto foi tão violento que o plasma nuclear jorrou em golfadas para além da superfície. A crosta rachada, esfarelada, dispersou-se em estilhaços, disparados a grande velocidade.

O comandante não celebrou a vitória. O senador tentou alentá-lo:

– Não se constrói um Império sem quebrar ovos.

12.4.17

Caroço

Eu andava tenso e, durante o banho, senti um nódulo nas costas. Esgotado, tomei um analgésico e dormi. No outro dia, havia um calombo no local; e incomodava, doía muito! No desespero, cutuquei com uma faca. A pele rasgou e saiu dali um ovo; dentro dele, o pequeno demônio já gritava:

– Queime tudo!

11.4.17

Eclosão

Após os tremores, rachaduras rasgaram a capital. Enquanto prédios iam ao chão e aquela imensa criatura brotava dali, todos corriam desesperados.

Sob um viaduto, três pessoas buscaram abrigo. Quando se reconheceram, riram. Um deles comentou:

– Vocês também se conhecem? Esta cidade é mesmo um ovo.

10.4.17

Pregador

Sobre um caixote de madeira, no meio da praça, vociferava, eloquente, cortando o vento com as mãos. Em seus discursos inflamados, trazia à tona, das profundezas, os maus presságios de um mundo pestilento.

Era um soldado fanático, idealista, travando guerra de trincheira contra inimigos invisíveis.

8.4.17

Crônica

Engolia oito pílulas por dia: uma para acordar; uma para comer; uma para sair de casa; uma para manter o foco no trabalho; uma antes e uma depois da academia; uma para gozar; e outra para dormir.

Entupido de remédios, ainda sentia-se mal. O que tinha não era doença, era sina; e a vida não tem cura.

7.4.17

Colateral

O remédio da pressão piorou a circulação; o da circulação complicou o coração; o do coração corroeu o estômago; o do estômago deu pedra no rim; sobrecarga do fígado; dor nas juntas.

E por fim, naquele equilíbrio tão frágil, de folha de outono em galho seco, um vento gelado e a pneumonia o levaram.

6.4.17

Lucidez

Sonhar com a guerra, naqueles tempos em que só se conhecia a paz, era como dar à luz os horrores das batalhas entre os homens.

Ao acordar, desesperada, contraiu-se, como se tentasse conter aquilo tudo no mundo das ideias, e suplicou: que a Grande Mãe não permita nunca que as mulheres percam o poder!

5.4.17

Referência

No calor da discussão, antes de virar as costas, disse que encontraria milhares iguais a ela.

A profecia cumpriu-se. Desde então, em cada mulher que encontra, há alguma coisa que é dela.

4.4.17

Estilhaços

Após libertar-se daquela relação, fez da mudança um ritual de passagem.

Ao abrir a última caixa e deparar-se com o veleiro aprisionado na garrafa de vidro, não teve quaisquer dúvidas. O fundo da garrafa cedeu nas primeiras pancadas; e, enfim, o vento soprou a favor, com promessas de novos rumos.

3.4.17

O beijo

Aquele beijo foi tão intenso que permaneceria cravejado na memória até o último suspiro.

Depois daquele momento, ele sabia, no entanto, que se tratava de uma questão de horas, talvez dias. A máfia não perdoa.

2.4.17

Epidêmica

Em meio à discussão, sentenciou, com veemência, que homossexualismo era doença

Inflamada, a amiga surpreendeu-a com um beijo

Horas depois, já era impossível conter a febre

1.4.17

I Prêmio IFSC de Literatura

Em outubro de 2016, vislumbrei um desafio: o IFSC publicou um edital de fomento a atividades culturais. O edital previa o aporte de R$ 2.170,00 para financiar atividades culturais a serem realizadas entre os meses de novembro e dezembro daquele mesmo ano.

Com esse valor em mente, comecei a avaliar possibilidades, angariar parceiros e, no final das contas, julguei que seria possível realizar um concurso literário e publicar uma coletânea.

Os autores André Kondo e Edgar Borges, parceiros de longa data no blog Concursos Literários, abraçaram a causa; em especial o André, responsável pela Telucazu Edições, que se comprometeu a ceder gratuitamente o ISBN para a obra. Além disso, a professora Estela se comprometeu a revisar a obra e a bibliotecária Karla se comprometeu a elaborar a ficha catalográfica. Outras pessoas também se envolveram a colaboraram para o sucesso do projeto, com destaque para a Fabi Schrodi, o Daniel Augustin Pereira e também para os estudantes bolsistas do projeto: Luan, Thaline e Thayna.


Após pouco mais de duas semanas de inscrições, recebemos 349 textos e, após a eliminação de 25 deles, pelo descumprimento do regulamento ou por equívoco dos autores no processo de inscrição, 324 foram avaliados pela Comissão Julgadora.

O objetivo da Comissão era selecionar 60 textos para compor a coletânea do I Prêmio IFSC de Literatura. No entanto, selecionamos 69 textos. Dos 69 autores e autoras selecionados, 44 nunca haviam publicado nenhum texto.

A minha trajetória na literatura começou com o saudoso Concurso Nacional de Contos Luiz Vilela; e foi muito interessante poder abrir espaço, através do Prêmio IFSC, tanto para autoras e autores que já circularam por aí quanto para outros que estão vivendo a mesma experiência que vivi lá em 2007, quando vi meu primeiro texto publicado.

Espero ter outras oportunidades para organizar e editar obras de diversos autores e autoras. Que venham os editais! E que se mantenham as parcerias!


Mais informações:
http://premioifsc.blogspot.com.br/

9.3.17

9º Concurso Literário Conto e Poesia - Sinergia

A poesia Quimeras foi selecionada para compor a coletânea do 9º Concurso Conto e Poesia, organizada pelo Sindicato dos Eletricitários de Florianópolis – Sinergia.



18.2.17

II Prêmio Escambau de Microcontos

O Prêmio Escambau de Microcontos, organizado pelo grupo Escambanautas, de Fortaleza, tem uma dinâmica muito interessante de participação: são lançadas palavras-tema diárias e, semanalmente, os organizadores selecionam os 35 melhores textos. O concurso dura 28 dias e atrai participantes de todos os cantos do país; além de alguns autores e autoras além-mar!

Na segunda edição do prêmio, realizada em janeiro de 2017, três de meus microcontos, com as palavras Semente, Destino e Circo, foram selecionados entre os melhores do certame.

17.2.17

Caixinha

Naquele aniversário, ganhei de presente uma caixinha quadrada. Fiquei decepcionada, emburrada.

Então, minha avó aproximou-se, encaixou um pedaço de metal em um canto e começou a girar.

Quando ouvi os primeiros estalos, abri bem os olhos. Quando vi a bailarina, enchi-os de lágrimas.

16.2.17

Insípido

Quando viu aquela mão desconhecida estendida, oferecendo um pequeno quadrado colorido, achou que fosse um chiclete, algum doce; mas não tinha gosto.

Horas depois, no momento em que as gotas da chuva em cores vivas começaram a explodir em notas musicais na areia movediça da praia, tudo fez sentido.

15.2.17

Famintos

Não me esqueço daqueles olhos desconfiados, de quem já viu e sofreu muita maldade. Apesar da fome, demorou a aproximar-se, arisco. E, quando veio, olhou-me nos olhos, através deles; como se buscasse desvendar minhas intenções.

Somente após comer, quando caiu no sono, é que voltou a ser criança.

14.2.17

Acolhida

Aqueles que o cercavam ordenaram que a calasse, mantivesse encarcerada e, se necessário, matasse, para que nunca mais se manifestasse.

Subversivo, manteve-a escondida, sob seu amparo.

Todos os dias, seguia ao trabalho encenando severidades. Ao retornar ao lar, deixava a criança divertir-se, livre.

13.2.17

Coice

Ele era criança ainda, não tinha mais de seis anos. Ouviu o barulho e, quando se aproximou do cercado dos cavalos bravos, viu a marca da ferradura no rosto disforme; e o sangue que começava a verter.

Nunca mais esqueceu aquela cena. Ainda ouve na memória aquele grunhido, um ronco bestial de dor.

12.2.17

Causos

Seu Jorge, ferreiro de renome, retornava ao lar quando um rapaz austero, meio coxo, abordou-lhe em uma esquina:

– O senhor aí, forjador, cuja fama atravessa fronteiras, já fez ferradura para bode?

– Bode? Bode não usa essas coisa... Pra que diabos eu faria isso?

– A princípio, apenas para um...

11.2.17

Sororidade

No ambiente de trabalho, era uma exímia domadora de ignorantes. Não se afetava pelos burburinhos entre os subordinados: dominadora, mal-comida, entre outros ainda piores.

Apesar disso, desabou em lágrimas, de empatia e raiva, quando viu o próprio filho, em frente ao colégio, humilhando uma colega.

10.2.17

Mais valia

O circo precisava de novas atrações; mas tudo que tinha a oferecer era moradia precária, comida e água.

Foi então que o domador teve uma ideia. Espalhou pela floresta centenas de cartazes: "O trabalho dignifica o animal! Troque a instabilidade da selva pela segurança do lar e garantia de ocupação".

9.2.17

Quimeras

Quando enfim despertou, percebeu-se cercado por quimeras.

Cada ser tinha os traços, a figura humana. No entanto, para quem reparasse nos detalhes, ficava evidente a verdade: eram monstros, com apenas alguns resquícios de humanidade.

De súbito, levou as mãos sobre o rosto; e respirou aliviado.

8.2.17

Autodidata

Ele era autodidata; e extremamente dedicado. Cada vez que se interessava por um tema, arregaçava as mangas, botava as mãos na massa e ia a fundo, destrinchando a matéria e dissecando os conteúdos.

Foi preso quando estava prestes a publicar um tratado revolucionário sobre anatomia humana.

7.2.17

Refreado

Até aquele dia, havia sempre andado na linha, contido. Mas a dura realidade, que lhe foi apresentada em uma sequência penosa de violência, impunidade e impotência, foi mais do que o suficiente para desequilibrá-lo.

Descarrilou, como um trem desgovernado; e seguiu sem rumo, à margem de tudo.

6.2.17

Retorno

Quando os trens partiram lotados, todos ficaram receosos.

Mas foi apenas quando voltaram, vazios e insaciados, que o desespero abateu-se sobre todos que ali estavam, confinados.

5.2.17

Monstros

Ao partir para o Cabo das Tormentas, estava certo de que encontraria monstros hediondos nas águas bravas.

Quando, por fim, aportou no Novo Mundo, com os porões abarrotados de escravos, deparou-se com águas plácidas, imaculadas, que refletiam com perfeição a brutalidade irreconhecível daquele rosto.

4.2.17

Rebentar

Encoberto pela noite de nuvens densas, mantinha o cabo do punhal sobre o peito, junto à respiração em ritmo lento, mas firme. Quando o sujeito se aproximava, um clarão irrompeu as trevas.

O lampejo do raio revelou o cenário armado; e o rebentar do trovão abafou o grito de desespero.

3.2.17

Aflição

Ela passava o tempo suspirando, deitada, encolhida; com os joelhos dobrados sobre o peito comprimido.

Para desafogar a ansiedade, contava os dias e horas, em marcas feitas à unha, na parede da solitária.

2.2.17

Detalhista

Metódico, beirando o compulsivo, havia forrado o chão e os móveis daquele cômodo com plástico e jornal.

Ingênuo, sem nenhuma prática, não suspeitava que o sangue respingaria nas paredes; e até mesmo no teto.

1.2.17

Destino trançado

Quando a vizinha deu a ideia de desfazer-se das madeixas e dispôs-se a acompanhá-la ao salão, não imaginou que houvesse, por trás dos sorrisos, má intenção.

Ao deparar-se com as velas negras ao redor de sua própria foto, com a boca costurada em trança de cabelo, revisou trêmula o dia anterior.

31.1.17

Desfiados

Quando passaram lado a lado, na entrada do mercado, não se esbarraram por detalhe. Na fila do caixa, os olhares não se cruzaram e, na saída, nem ao menos repararam um no outro.

Enquanto isso, na casa das Moiras, o gato endiabrado distraía-se com os fios da vida, desfazendo as tranças do destino.

30.1.17

Demanda

Naqueles tempos sombrios, de ignorância desmedida, não faltava ocupação para diabo algum

Cada mente vazia, oficina diligente, demandava barbaridades

29.1.17

Ocupação

– Estudado eu não sou, não, seu moço. O saber que eu tenho é da vida e de exercer ofícios; Nunca me faltou ocupação, pois que sempre tive disposição de começar no rés do chão e ir subindo. Umas hora a gente cansa de tanto recomeço, mas a vida segue, né? O senhor não tem um serviço para mim aí, não?

28.1.17

Dançando com tubarões

Com os investimentos certos, criou súbitas fortunas e atraiu grandes investidores. No entanto, quando veio a crise, perdeu muito dinheiro, das pessoas erradas.

Para quem almejava ser tubarão, foi trágico, no final das contas, virar comida para peixe.

27.1.17

Espólio

Ele era um livro aberto; e os mais próximos não demoravam a desvendar suas intenções.

Quando perceberam que pretendia deixar seu reino de herança aos desvalidos e necessitados, irromperam em cólera. Para evitar o disparate, entregaram-no à morte e forjaram um novo testamento.

26.1.17

Ciúmes

E o livro de cabeceira, que costumava ser bastante reservado, ficou de orelhas em pé ao descobrir, meio que por acaso, que no cômodo ao lado– bem ali, cruzando o corredor– havia longas prateleiras, repletas de histórias já vividas

25.1.17

Sobressalto

Ao cair da tarde, a maré subiu e algumas ondas bravias vieram lamber-lhe os pés. Acordou assustado, levantou-se de um salto e correu atrás do chinelo, arrebatado pelo mar.

Quando finalmente resgatou os dois pares, virou-se para a praia vazia e, só então, lembrou-se: o pequeno tinha vindo junto.

24.1.17

Olhos de Ressaca

Desde o enterro de Escobar, não me acode imagem capaz de dizer o que foram aqueles olhos de Bento; o que foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. Traziam não sei que fluido inconstante e grave, uma força de arrasar o que estivesse adiante, como maré brava que se levanta contra a praia.

23.1.17

Despachado

O juiz de plantão estava embriagado quando trouxeram o meliante sob custódia, requerendo que despachasse com prontidão e definisse a pena.

Ele urinou sonoramente, de porta aberta. Retornou à sala pitando um cigarro e, sem burocracia, expediu a sentença:

– Esse aí é reincidente, bota no "microondas".

22.1.17

Virtuoso

Naquela época, cada qual era, ao mesmo tempo, intendente, juiz e carrasco. Cada homem carregava em si o peso da lei.

Uns tantos envergavam, com tamanha responsabilidade. Mas não o reverendo Samuel Parris, cidadão virtuoso, dedicado a sua divina missão: livrar de todo mal o vilarejo de Salem.

21.1.17

Língua(s)

O amigo de além-mar contava extasiado sobre um passeio de gaivotas. Ela, inebriada, imaginava-o segurando fios com aves nas pontas, de carona até um cometa.

Quando ele mencionou o esforço para pedalar de volta à margem, ela retomou a razão; relembrou que se tratava de uma língua só, mas bifurcada.

20.1.17

Contra o vento

Era um exímio empinador de pipas, profissional; e tinha uma para cada ocasião: morcego azul para polícia; baratinha preta para caveirão; de biquinho vermelha para milícia; carrapeta roxa para facção rival; e gaivota branca para cessar-fogo.

No entanto, ficou obsoleto com a chegada do whatsapp.

19.1.17

Ciclos do Fogo

Passou quatro anos apagando incêndios, mas conseguiu auditar as contas e pôs a casa em ordem. Deixou até dinheiro em caixa, para mudar de fato aquele pobre povoado. No entanto, não conseguiu reeleger-se.

Ainda hoje, quando passa pela praça, desconsolado, o povo desdenha:

– Esse aí só fez lenha!

18.1.17

Locomotiva

Estufava o peito, soltando vapor pelas ventas, ao maquinar discursos separatistas. Apontava o fardo injusto que aquela região, locomotiva do país, estava condenada a carregar caso não se libertasse

Nunca citava, talvez por esquecimento, de onde vinha toda a lenha para manter o fogo aceso

17.1.17

Desolada

Os tratores insinuavam-se
com correntes nos entremeios

sobre o colo desnudo da Terra


Logo estaria toda lisinha

como se dizia adequado
às moças comportadas

- reclusas e recatadas

daqueles tempos

16.1.17

Desfecho

O espetáculo teve um encerramento súbito e dramático

O brilho do giroflex, em azul e vermelho, atravessava as janelas e incidia sobre a fumaça de narguile que ainda preenchia o espaço. No centro do palco, os sete véus– empapados de sangue, cobriam o corpo

15.1.17

Posfácio

Após meses de atraso, com a corda no pescoço por ter descumprido o contrato, enfim compôs o encerramento perfeito

Assim que finalizou a obra, enviou-a para os editores e partiu com pressa: tinha um destino trágico a cumprir

14.1.17

Plenitude

Naquela noite insólita

o eclipse lunar
foi simbólico


o encerramento da noite
sobre si mesma

o pôr da lua
escuridão plena


um momento propício
- sem sombras ou dúvidas

aos maus presságios

13.1.17

Apropriado

A semente brotou, criou raízes e folhas. De início, era um pouco incômodo, mas logo habituou-se.

As flores tornaram o fardo um pouco mais leve, mas logo percebeu que a questão era mais grave do que imaginava: a dúvida estava gerando frutos; que não tardariam a infestar-lhe as ideias.

12.1.17

Dúvida

Depois que se afastou da corporação, demorou algum tempo para habituar-se.

Não havendo hierarquia, restava a dúvida: como saber quem está certo e quem está errado?

11.1.17

Coragem

Admirava o avô e sua presença no palco. Um dia perguntou-lhe:
– Vô, você acha que eu tenho alma de artista?
A resposta veio rápida, como um bote certeiro:
– Alma é um vestido de seda que os covardes usam como se fosse armadura.
Ele ficou para sempre na dúvida: era mais incentivo ou descrença?

10.1.17

Alma

Logo após a primeira mordida, percebeu-se, enfim, plena.
Estava consciente de seu próprio corpo, do universo de possibilidades que a cercava, de tudo.

Deixou de ser um objeto, submissa; agora, teria seus próprios sonhos e devaneios, teria alma.

9.1.17

7.1.17

Vorazes

Eram, de fato
criaturas peculiares

de hábitos incomuns


alimentavam-se do caos
de todo tipo de fontes

e após pouco tempo
- sem qualquer processamento

expeliam palavras de ordem

6.1.17

Prática da Relatividade

Desde sempre
e até onde a vista alcança

tempo
e espaço

são
foram
serão

em qualquer direção
- ou sentido

relativos


quanto menos espaço
você ocupa

mais tempo sobra

(e vice-versa)

5.1.17

Fluidos

Estavam certos os profetas
que ninguém levou a sério

o progresso nos trouxe
a uma nova era:

são tempos líquidos

- talvez pastosos

o chorume acumulado
de milênios passados